quarta-feira, 23 de março de 2011

Ensaio sobre a pena e o medo


Pergunta: Como não sentir medo se temos pena?

Resposta: Tratam-se de sentimentos diversos que juntos se promovem.

Exemplos: Medo de que conosco se suceda o motivo da pena alheia, ou o inverso: sentir pena do medo alheio;

Exemplo prático 1: Pena dos orientais, vítimas das intempéries, seguida do medo íntimo de malograr com o mesmo fim;

A fórmula também funciona ao contrário, senão vejamos:

Exemplo prático 2: Medo de ser assaltado à porta de casa, seguido da pena do possível meliante maltrapilha que, provavelmente não ceia já tem bom tempo;

Exceções à regra: Existem. Geralmente ocorrem em casos de guerra ou em que envolvem genocidas, ditadores, e/ou ainda, quando das atividades desportivas.

Exemplo prático da exceção: Todos têm medo da guerra na Líbia, com exceção dos países do norte, porém, nem os países do sul sentem ou sentirão pena de Muammar Abu Minyar al-Gaddafi, quando este capturado for.

Os mais apressados e, não menos desatentos, poderão dizer que mesmo em se tratando da guerra, não há como escusar-se do sentimento da pena para com os civis inocentes que fenecerão perante a fúria bélica projetada no continente africano. A estes, tal reivindicação assiste razão. Porém, ao longo da história a guerra jamais fora interrompida diante destes pormenores, sob a velha justificativa de que os fins justificam os meios ou, segundo o dito que muitos se valem: não há omelete sem que alguns ovos sejam quebrados.

O presente ensaio não visa discorrer sobre a guerra ou suas atrozes conseqüências, eis que trata de mero ensaio sobre a pena e o medo e suas razões de juntos se apresentarem, motivo pelo qual este narrador desculpa-se pelo exemplo sanguinolento. Assim passemos ao exemplo de práticas desportivas.

Exemplo prático da exceção 2: Quando se desempenha uma atividade desportiva, embora a existência do medo, e aqui alguns chamarão de ansiedade, causado pelo embate ou pela necessidade da vitória, ignora-se a pena do adversário, ao qual se busca a glória.

Também haverá divergências quanto ao fato de sempre existir a pena do oponente quando este ocupa a condição de mais fraco, todavia, não podemos esquecer que no exemplo em questão, trata-se dos sentimentos do atleta para com o seu adversário, e não da torcida com relação aos competidores.

Para evitarem-se maiores discussões, retornemos à questão do ponto em que paramos, auferindo que a fórmula da exceção também funciona ao contrário:

Exemplo prático da inversão da exceção: Ninguém sentirá medo da leitura do presente ensaio, contudo, muitos poderão sentir pena deste narrador pela pouca prática na escriba, ou, pela singeleza deste divagar.

Aproveitem os devaneios.

Guilherme de M. Trindade

quarta-feira, 9 de março de 2011

Romance do Injustiçado (Apparício S. Rillo)

Como talhado em pau-ferro,
o carão de traços duros,
o bigodão mal cuidado
desabando sobre os lábios;
par de asas mui cansadas
de um avejão de cor negra.
Melena de muitos meses,
sobrando por sobre a gola
e o colorado de um lenço,
sangrando em riba do peito.

A bombacha de dois panos,
remangada sobre a bota.
Os cravos da espora grande
mordendo a franja do pala,
bem atirado pra trás.
No fivelão da guaiaca,
luzindo em campo de prata,
o louro das iniciais.

Sobrando da faixa negra
que lhe abarcava a cintura,
o cabo entalhado em chifre
da xerenga de dois palmos.
Um relho, trança de oito,
vinha arrastando a açoiteira
dependurado no pulso
pelo tento do fiel.

Pela rédea, o azulego,
se via que flor de flete
malgrado a estampa judiada
de pingo que muito andou.
Foi assim que há muitos anos
bateu nas casas da estância
o celebrado bandido
chamado “Estácio Arijo”.

Bandido
para a justiça,
por seu respeito se explique,
que as razões de um índio macho
nem sempre são bem aceitas
pelos códigos e leis.

Bandido
por ter sangrado,
igual de raiva e de armas
a um cujo que desonrara
a mais moça das irmãs.

Bandido,
porque apertado
entre as brigadas e a enchente,
já não podendo escapar
por debaixo da fumaça,
matou um dos quatro praças
que lo quiseram carnear.

Bandido,
porque seguido
por milicadas sequiosas
de uma vingança total,
fugiu da estrada real
para o mais fundo dos matos,
carneando chibos alheios
para o churrasco sem sal.

Bandido,
porque enleado
na rudez da ignorância,
fez da fuga e da distância
seu modo de mal viver;
porque quis a sina ingrata,
que nunca tivesse plata
para pagar um bacharel.

Bandido,
porque não teve,
a exemplo de tanta gente,
cancha livre, costas quentes,
à sombra de um coronel.

E assim viveu como bicho,
pelos fundões das fazendas,
a carregar a legenda
de perigoso e assassino,
ximbo, bagual, teatino,
com fama de touro alçado,
tragando o duro guisado
que lhe picava o destino.

N’algum bolicho de estrada
boleava a perna cestroso,
pelos domingos de tarde.
Para um cantil de cachaça,
meio quilo de bolacha
mais um punhado de sal.

Olhava de olhos compridos
para o mais das prateleiras,
pra um bom fumo amarelinho,
pros maços de palha buena,
para a erva de palmeira,
num saco sobre o balcão.
Mas vinha curto seu cobre,
mal e mal traz precisão;
o bolicheiro era pobre,
e ele não era ladrão.

E a polícia no seu rastro,
malgrado o tempo passado,
perseguido e acuado
por plainos e socavões,
sempre mudando de pouso
pra confundir os milicos,
que em manhas sim, era rico,
por evidentes razões.

Cansou-se um dia, afinal,
daquela vida de bicho,
daquele estranho cambicho
com as más volteadas da sorte,
de não ter rumo nem norte,
não ter descanso ou sossego.

E assim bateu cá na estância,
naquele entono de taita
que manda parar a gaita
por ter cansado do baile.
E ao patrão, velho Boerana,
pediu Estácio Arijo
que mandasse algum chirú
levar ao povo um recado:
que viesse o delegado,
que ele afinal resolvera:
ele, o bandido; ele, o maula,
trocar o largo dos campos
pelo encolhido das jaulas.

Nas suas noites de insônia,
entre um pelego e as estrelas,
conseguira convencer-se
que, sendo justa, a justiça
lhe entenderia as razões
e lhe daria, a lo muito,
poucos anos de condena
ou mesmo absolvição.

Foi então, que a meia tarde,
num fordecão atochado,
deu na estância o delegado
com quatro praças por quebra
para formar o sarilho:

quatro fuzis embalados,
quatro dedos no gatilho.

Então ... Estácio Arijo
tomou seu último mate,
no mesmo entono de guapo
que era seu jeito de sempre,
arrastou a espora grande
na direção dos milicos.

- Nem mais um passo!
gritou-lhe num gritinho de falsete,
o delegado, um joguete
nas mãos do chefe local.
- Levante as mãos!
- Largue as armas!
- Esteje preso, seu bandido,
seu metedor de pendenga!

E o Arijo, decidido
a entregar-se sem briga,
levou a mão à barriga
para descartar a xerenga.

- Cuidado! Berrou um praça.
Tremeram cinco covardes;
e na calma desta tarde
berraram quatro fuzis,
quatro sóis de fumo e sangue
se lhe acenderam no peito.

Foi desabando aos pouquitos
de frente para os milicos,
no jeito de um velho angico
caído junto às macegas
que lhe envejavam o entono.

E já quase adormecendo
para o derradeiro sono,
quatro vezes mal ferido,
teve ainda tino e ouvido
para escutar um dos cinco
que lhe gritava:
- Bandido!

Caiu ...
olhando pro céu,
tinto de sangue e de luz.
Dava-lhe o sol pela frente,
como a incendiar-lhe a figura,
a mais rica das molduras
para enquadrar um valente !


Aproveitem a poesia.
Guilherme de M. Trindade